09/11/2004

Em busca de cogumelos na Terra Fria

Sei por experiência que os dias não são todos iguais, por isso acredito que nem sempre são maus os conselhos recebidos pela televisão. Foi com este espírito que no último fim--de-semana comprido «fui para fora, cá dentro». Por demais confessada, até nesta página, é conhecida a minha paixão por Trás-os-Montes e já me roíam as saudades do Barroso... Com um grupo de exploradores micológicos do Convivium Arrábida do Slow Food, bem agasalhada, fiz- -me à Terra Fria. «Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas». «Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá.» (Miguel Torga in Portugal).





Depois de uma persistente e abençoada chuva a que se seguiram, embora tímidos, alguns raios de sol, eis que mesmo às portas de Montalegre nos encontramos estupefactos com uma das riquezas gastronómicas, ouso mesmo dizer uma das sumptuosidades transmontanas, os seus deliciosos e variados cogumelos selvagens. Dir-se-ia que os deuses estiveram do nosso lado. Numa floresta íngreme, em que convivem, entre outras maravilhosas árvores, pinheiros e carvalhos, para nosso espanto e encanto, o solo encontrava-se ponteado do laranja dos Cantharellus cibarius, aqui e ali, manchas enormes do branco de neve dos Lactárius vellereus, lindos, mas que dado o seu pouco interesse gastronómico deixamos em paz na floresta. A dois passos, chapéus de Boletos pinophilus cor de chocolate, mais além o atrevido e altaneiro Macrolepiota procera quase de braço dado com o Tricholoma portentosum cinzento escuro de bordas levemente amareladas e o frágil e tímido Hydnum repandum. Isto só para falar nos que destinámos ao jantar. Dos que não se comem, mas necessários ao equilíbrio da floresta, não é altura de falar. Nunca o grupo se tinha deparado com tal variedade…E não resisto ao prazer de lhes dizer como jantamos. Depois de uma deliciosa sopa do pote e de, pela primeira vez, provarmos a bola de centeio a que os barrosões chamam de «pobre» porque apenas cheira o presunto e o recheio ser sobretudo cebola estufada, de que resulta um verdadeiro pitéu, chegou a vez de apreciar o fruto da nossa exploração, que acompanhava a ilustre posta barrosã. Esta assada no espeto, depois de apenas esfregada com sal. Cozinhámos assim os nossos cogumelos: cortámos os boletos mais jovens, quase fechados, em quartos, passámo-los por ovos batidos com sal e pimenta, depois por pão ralado e fritámo-los. Todos adoraram. Seguiu-se uma frigideira de mistura, que é ainda a melhor maneira de apreciar os diferentes aromas das várias espécies. Usámos apenas três variedades que, diz quem sabe, é o mais acertado: cortamos em fatias os boletos - a insistência nos boletos deve-se à sua excepcional textura e aroma - os hidnos e os tricolomas e salteámo-los em azeite transmontano, até a água quase ter desaparecido; juntámos então alho e salsa picados e temperámos com pimenta fresca e flor de sal. Agitando bem a frigideira nos últimos momentos, o «molho» resultou muito cremoso. Um regalo! Separadamente, deu-se aos cantarelos,lindos e muito jovens, o mais simples dos tratamentos: lume muito forte e apenas azeite, flor de sal e vestígios de pimenta. Não podiam estar melhores.E foi assim que, sem grandes aventuras, micólogos iniciados e pretensos gourmets abençoámos a Mãe Natureza por nos ter dado esta terra de que o poeta diz que «é onde Portugal é grande».

Maria de Lourdes Modesto